Reflexões sobre apostas, jogos de azar, futebol e direito penal (Parte 4)
Caio Favaretto, Felipe Campana, Glauter Del Nero e Rafael Valentini
Em sua quarta parte, a série “O jogo mudou? Primeiras reflexões sobre apostas, jogos de azar, futebol e direito penal” tratará das possíveis consequências práticas às quais estão sujeitos os autores que confessarem ou forem condenados pelos crimes de corrupção no esporte, bem como serão feitas considerações sobre o processamento de tais delitos e a relação do tema com a “Operação Lava Jato” (parte n. 4).
Comentário inicial: Publicação da Lei Geral do Esporte e inexistência de abolitio criminis em relação aos delitos de corrupção no esporte
Antes, porém, um comentário relevante: no último dia 15 de junho foi publicada a chamada “Lei Geral do Esporte” (Lei n.º 14.597/2023 – “LGE”), fruto de um debate tido ao longo de anos no Congresso Nacional, que revogou expressamente, dentre outras leis, o “Estatuto do Torcedor” – Lei n.º 10.671/2003.
Ocorre que, em que pese a mencionada revogação, ela não acarretou a “extinção” dos crimes previstos no dito Estatuto (no linguajar dos penalistas “abolitio criminis”). Isso porque a recente Lei Geral do Esporte também prevê como crimes exatamente as mesmas ações anteriormente tipificadas no Estatuto do Torcedor, especialmente as infrações penais aqui denominadas de “corrupção no esporte” e “manipulação do resultado do evento esportivo”. De forma simples, as condutas de “corrupção no esporte” tipificadas como crime no Estatuto do Torcedor – e objeto de análise na parte n. 3 desta série – não se tornaram atípicas, mas somente trocaram de previsão legal.
Houve, portanto, apenas uma continuidade normativa no tocante às condutas que já eram consideradas proibidas pela legislação brasileira e, como consequência, as ações praticadas antes da publicação da LGE, incluindo aquelas noticiadas recentemente a respeito de jogadores de futebol profissional, continuarão sendo passíveis de eventual responsabilização penal.
Feito esse esclarecimento necessário, iremos analisar as possíveis consequências práticas decorrentes das ações tipificadas na LGE como “crimes contra a integridade no esporte” (previstos nos artigos 198 a 201).
Possibilidade de propositura do ANPP
Os artigos 198, 199 e 200 foram incluídos na seção atinente aos “crimes contra a Incerteza do Resultado Esportivo“, e punem, respectivamente, as seguintes condutas: (i) art. 198: “Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado“; (ii) art. 199: “Dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado“; (iii) art. 200: “Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado“.
Os três delitos são previstos com a mesma sanção penal: reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Em termos práticos, significa dizer que os sujeitos que praticarem tais delitos, de forma isolada e não cumulativa, poderão se beneficiar, em regra, do acordo de não persecução penal (o “ANPP”), estabelecido no artigo 28-A, do Código de Processo Penal.
Trata-se de modalidade de acordo penal (exemplo de Justiça Negocial visando a celeridade e efetividade da solução dos casos criminais) que pode ser proposto pelo Ministério Público desde que respeitados alguns requisitos exigidos em lei, entre eles:(i) a “confissão formal e circunstanciada” por parte do autor do delito e (ii) o de que o ilícito praticado envolva “infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos“.
Nesse segundo ponto, portanto, estariam preenchidas as condições objetivas para que o ANPP fosse proposto aos autores que praticassem qualquer das três condutas acima descritas e tipificadas na LGE, posto que se tratam de infrações penais que a lei pune com pena mínima de 2 (dois) anos de reclusão e não envolvem o emprego de violência contra a pessoa (sendo necessária ainda, como visto acima, a confissão).
Superada a etapa de avaliação quanto ao preenchimento dos requisitos do acordo penal em questão, o Ministério Público poderá estabelecer como condições para cumprimento do acordo por parte do autor do delito a reparação do dano (inciso I); a renúncia voluntária aos bens e direitos que forem tidos como instrumentos, produtos ou proveito do crime (inciso II); a prestação de serviço à comunidade ou a entidades pública em período (inciso III).
Uma vez aceito e homologado judicialmente o acordo de não persecução penal (§ 6º), o caso criminal ficará suspenso durante o período em que o agente estiver cumprindo as obrigações assumidas, sendo que, após o estrito cumprimento de tais condições, o juiz irá declarar a punibilidade do agente extinta (§ 13º).
Ainda, a aceitação do acordo de não persecução penal não gera antecedentes criminais (§ 12º), muito embora o autor fique impossibilitado de se beneficiar de novo ANPP nos próximo cinco anos por expressa vedação legal (§ 2º, inciso III). Na hipótese de descumprimento das condições convencionadas entre o agente e o Ministério Público, deverá o acordo ser rescindido e o caso encaminhado para propositura da ação penal (§ 10).
No mais, a pena mínima de 2 (dois) anos de reclusão possibilita, como regra, que o condenado criminalmente possa ter sua pena de prisão convertida nas penas alternativas previstas no artigo 43, do Código Penal, conforme autoriza o artigo 44, inciso I, idem.
Competência para processar e julgar os crimes de corrupção no esporte
Com relação ao processamento dos casos que narrem a “corrupção no esporte” e a “manipulação dos resultados esportivos”, a LGE estabelece que “Os juizados do torcedor, órgãos da justiça comum com competência cível e criminal, poderão ser criados pelos Estados e pelo Distrito Federal para o processamento, o julgamento e a execução das causas decorrentes das atividades reguladas nesta Lei” (artigo 180).
Assim, o legislador facultou à Organização Judiciária a criação de “unidades jurisdicionais especializadas” — ou juízos — para processamento e julgamento dos “crimes contra a integridade no esporte”, como já ocorre com relação aos crimes lavagem de dinheiro e violência doméstica e familiar nos tribunais brasileiros. Não havendo a criação de tais juízos, deverão ser observadas as regras gerais de competência e processamento descritas no artigo 69, do Código de Processo Penal.
A definição criteriosa do juízo competente para processamento e julgamento dos ilícitos penais aqui tratados não se trata de mero capricho formal, mas sim de “regra do jogo” que deve ser observada para se evitar nulidades de processos e/ou condenações por inobservância à formalidade expressa em lei.
A competência jurisdicional ganhou destaque nos casos criminais decorrentes da “Operação Lava Jato”, onde muito se discutiu sobre a (in)competência da 13ª Vara Federal de Curitiba (principalmente) para processamento de fatos que, de acordo com os critérios de definição de competência da legislação processual penal, deveriam ser processados em outras unidades jurisdicionais.
Sem tecer qualquer consideração sobre o acerto ou desacerto das conclusões sobre os critérios aplicados na referida Operação (decorrentes, especialmente, das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal), o fato é que os questionamentos jurídicos tidos nas dezenas de ações penais rotuladas como “fases da Lava Jato” a respeito do tema “(in)competência”, revelam a importância de se observar, criteriosamente, as formalidades previstas na legislação processual para processamento dos “crimes contra a integridade no esporte”, a fim de se evitar o desperdício de tempo e recursos com processos criminais maculados por vícios procedimentais.
Como se vê, diversos são os aspectos processuais que envolvem os delitos que punem a “corrupção no esporte” e “manipulação do resultado do evento esportivo”, tanto sob o enfoque das possíveis consequências práticas decorrentes dos ilícitos penais cometidos, como em relação ao processamento dos casos criminais decorrentes destes fatos, havendo, inclusive, margem para interpretações distintas sobre o alcance e aplicabilidade das normas incidentes — competindo ao Superior Tribunal de Justiça e, nas questões de envergadura constitucional, ao Supremo Tribunal Federal, a fixação das diretrizes para a melhor interpretação jurídica.
*Caio Favaretto, advogado criminalista, professor da Pós-graduação em Direito Penal Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/SP
*Felipe Campana, advogado criminalista, doutorando e mestre em Direito Penal pela FD-USP
*Glauter Del Nero, advogado criminalista e professor da Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie
*Rafael Valentini, advogado criminalista, especialista em processo penal e membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP