O jogo mudou? – 3

Reflexões sobre apostas, jogos de azar, futebol e direito penal (Parte 3)

Caio Favaretto, Felipe Campana, Glauter Del Nero e Rafael Valentini

A série “O jogo mudou?” busca, na edição dessa semana, responder às seguintes perguntas: o apostador que faz uma oferta comete algum crime? E o jogador que é contatado, poderia ser penalmente responsabilizado?

Conforme indicado na Parte n. 2 (https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/o-jogo-mudou-2/), as práticas de manipulação de apostas por meio de combinação de eventos em jogos de futebol têm o condão não somente de atingir o patrimônio de apostadores, mas também de ofender interesse maior, que é a integridade do esporte. Para proteger essa integridade, o ordenamento jurídico-penal brasileiro prevê os crimes de corrupção no esporte (arts. 41-C e 41-D do Estatuto de defesa do torcedor – Lei n. 10.671/03).

A questão é saber se as condutas que vieram à tona com a Operação Penalidade Máxima, que envolvem a manipulação de apostas por meio da combinação da ocorrência de situações em um jogo de futebol, são captadas por esses crimes, de modo que aqueles que as praticarem poderão ser considerados penalmente responsáveis.

Para fazer essa análise, partiremos novamente da conduta base e das possíveis variações, conforme já descrito na Parte n. 2 (https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/o-jogo-mudou-2/), e verificaremos se os elementos exigidos pelas descrições legais desses dois crimes estão ou não presentes.

Os crimes de corrupção no esporte

Dê início, o leitor e a leitora precisam ter em mente que os crimes de corrupção no esporte seguem a lógica dos tradicionais crimes de corrupção pública: há um crime destinado especificamente aos participantes do evento esportivo (no caso, o jogo de futebol), que aqui denominaremos de corrupção passiva no esporte (art. 41-C do Estatuto do Torcedor), e outro crime destinado exclusivamente a terceiros que buscam o conluio com os participantes do jogo de futebol, que aqui denominaremos de corrupção ativa no esporte (art. 41-D do Estatuto do Torcedor).

  1. Corrupção passiva no esporte (art. 41-C do Estatuto do Torcedor)

A descrição legal do crime é: “Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado”.

Não é qualquer pessoa que pode praticar esse crime, sendo necessário que o indivíduo tenha uma qualidade especial, ainda que não esteja escrita expressamente na lei, que é a de ser participante do jogo, pois são essas as pessoas capazes de praticar atos ou omissões com potencial de alterar o resultado do evento ou da competição esportiva. Na conduta que estamos examinando, os envolvidos eram jogadores de uma das equipes em campo. Portanto, essa qualidade especial estava preenchida.

O segundo elemento para que se considere que um comportamento configurou a prática desse crime é a vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial. É preciso que alguma vantagem esteja envolvida na situação para que se possa considerar que o participante do jogo tenha cometido o delito. Na situação base que estamos analisando havia uma soma em dinheiro envolvida, razão pela qual pode-se dizer que a vantagem também estava presente. Se, no entanto, em uma situação inusitada, o participante do jogo aceitasse realizar determinado ato ou omissão sem o envolvimento de qualquer vantagem específica em troca, não há que se falar em prática criminosa.

Sobre essa vantagem é que recai a conduta proibida pela lei penal que, no caso, é solicitar ou aceitar. Assim, para praticar o crime, o participante do jogo pode buscar contato com terceiro, requerendo a vantagem (solicitar), ou pode, diante de um contato do terceiro apresentando promessa de vantagem, concordar com ela (aceitar). Na situação base, os jogadores de futebol eram procurados por apostadores com promessas daquelas somas em dinheiro e aceitavam essa promessa. Portanto, a conduta proibida também estava presente.

Há, porém, variáveis nos casos noticiados a respeito do aceite e do que aconteceu posteriormente. Caso o jogador não tenha aceitado a promessa de vantagem que lhe foi feita, evidentemente sua conduta não se encaixará na descrição legal e ele não será penalmente responsável. Por outro lado, caso o jogador faça a solicitação da vantagem, mas o terceiro não cumpra com ela, o jogador continuará sendo passível de responsabilização penal. A situação fica um pouco mais complicada quando o jogador aceita a promessa, mas, entre o dia do aceite e o jogo, acaba voltando atrás voluntariamente. Uma interpretação mais restritiva chegaria à conclusão de que essa desistência posterior não é capaz de impedir a responsabilização do jogador, pois a lei criminaliza o simples aceite. Assim, o jogador “desistente” poderia ser penalmente responsável da mesma forma pelo crime do art. 41-C do Estatuto do torcedor.

O último elemento objetivo dessa análise é o mais relevante e, provavelmente, o que gera maior polêmica na situação em questão: trata-se do pacto de injusto, isto é, a combinação entre os agentes, marca essencial de qualquer crime de corrupção. No tipo penal em questão ele é expresso pelo elemento “para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado”. Ou seja, não basta que o participante do jogo solicite ou aceite uma promessa de vantagem, é preciso que exista uma troca, um pacto, entre o terceiro que recebeu a solicitação ou fez a oferta, e esse participante. O pacto aqui é exatamente trocar a vantagem solicitada ou aceita por praticar um ato ou uma omissão (conduta humana) dentro do jogo. No entanto, é preciso que essa conduta humana tenha uma potencialidade específica: de alterar ou de falsear o resultado da competição ou do evento.

Esse elemento é mais complexo do que os anteriores e precisa ser, portanto, melhor explicado. Em primeiro lugar, é preciso compreender o que é “resultado da competição esportiva ou evento a ela associado”. O resultado de uma competição nada mais é do que a organização final dos participantes em ordem de classificação decorrente de suas respectivas performances, de modo a verificar quem foi o vencedor. No caso do futebol, que é nosso tema, trata-se da classificação do campeonato. Reparem, o termo não está limitado ao vencedor do campeonato, mas à colocação de cada equipe na classificação final. Para ilustrar, no Campeonato Brasileiro o resultado final da competição é a classificação das 20 equipes participantes após a última rodada. O “resultado do evento a ela [competição esportiva] associado”, por sua vez, é o resultado daquilo que interfere na competição o que, no caso do futebol, é o resultado da própria partida.

Surge aqui importante divergência interpretativa: o resultado de uma partida de futebol deve ser entendido somente como o placar do jogo ou compreende também os dados gerais do jogo que interferem no campeonato, como cartões amarelos, vermelhos, ocorrências na partida, etc.? Os Tribunais terão que se debruçar sobre o alcance da norma nesse ponto.

Além disso, é preciso entender o que seria alterar ou falsear esses resultados. O falseamento diz respeito à publicização de resultado diverso do que efetivamente aconteceu após o término do evento, como por exemplo em uma partida de futebol (evento), após o jogo terminar 2 a 1 para determinada equipe, o árbitro publicizar na súmula que o jogo terminou 2 a 2. Repare que aqui a ação de falsear o resultado tem, essencialmente, a conotação de tornar público algo diverso do que na realidade aconteceu. A alteração, por sua vez, diz respeito à modificação do resultado por meio de conduta não espontânea ou viciada durante o evento, ou seja, no decorrer de uma partida de futebol (evento), um jogador faz um gol contra propositadamente.

Feitas essas considerações, fica mais simples de delimitar o ato ou omissão que será objeto do pacto corrupto: só podem ser aqueles que têm a potencialidade de alterar ou de falsear a classificação final do campeonato esportivo ou o resultado final de uma partida.

Na situação base que estamos analisando, diversos atos foram prometidos por parte dos jogadores que aceitavam as promessas de vantagem patrimonial. A questão, e esse parece um desafio interpretativo que os Tribunais terão pela frente, é identificar quais deles tinham essa potencialidade real e quais não tinham.

Olhando primeiro para a variável da importância da partida para o campeonato, caso o jogador prometa realizar um ato ou omissão em uma partida que não é capaz de modificar a classificação final do campeonato (como ocorre no chamado “jogo para cumprir tabela”), esse elemento não é decisivo para a análise de sua responsabilidade penal, pois, conforme visto acima, também a promessa de praticar ato ou omissão com capacidade de alterar o resultado de uma partida (e não somente do campeonato) já é criminalizada.

É preciso, assim, olhar para a variável da situação do jogo combinada. Admitindo que o conceito de resultado de uma partida de futebol compreende, no mínimo, a quantidade de gols que cada equipe faz, não se discute que um gol é um ato capaz de alterar o resultado de uma partida de futebol. Portanto, se houvesse a combinação para marcar um gol contra, por exemplo, não se discutiria que estaríamos diante do que é exigido pela lei. Por outro lado, uma situação em que a combinação seja de acertar três vezes o travessão ao longo do jogo não parece preencher os requisitos exigidos pela descrição legal, pois, parafraseando Samuel Rosa, “bola na trave não altera o placar”. Se o objetivo inicial do jogador no ato do chute era justamente não fazer o gol, esse ato previamente combinado nunca teria potencialidade de alterar o resultado da partida, sob o ponto de vista da norma penal em análise.

A partir desse núcleo do conceito de “destinado a alterar resultado de partida de futebol”, é preciso entender quais situações ainda se encaixam nesse conceito, apesar de estarem em uma zona cinzenta, e quais não se encaixam. Aqui fica evidente a repercussão de adotar um conceito mais restritivo de resultado da partida como quantidade de gols ou mais ampliativo como o registro das principais ocorrências do jogo. Vejamos.

A combinação para realizar um pênalti na partida parece se aproximar de um ato com potencialidade de alterar o resultado da partida já em sua interpretação restritiva. Reparem que aqui pouco importa que exista a possibilidade de o pênalti não ser convertido, pois o importante é que o ato tenha uma capacidade direta de alterar o resultado e o pênalti confere ao jogador do time adversário a condição direta de marcar um gol, isto é, coloca-o diretamente e sem contestação em situação de praticar o último ato antes do gol, reduz demasiadamente os fatores impeditivos para se marcar o gol e, por consequência, alterar o placar da partida. Portanto, nesse caso parece estar formado o pacto exigido pela descrição legal.

De lado diametralmente oposto parece estar a combinação para provocar um escanteio para o adversário. Esse ato do jogo, por si só, não tem capacidade de alterar o resultado da partida de futebol diretamente, seja qual for o conceito de resultado que se adote. Partindo do conceito restritivo, mesmo que da cobrança do escanteio possa sair um gol, essa relação depende de outras circunstâncias na perspectiva da realidade do jogo, pois ela não coloca os jogadores em condições de realizar o último ato antes do gol sem contestação. Haverá a cobrança do escanteio e diversos elementos de sorte atuarão, ou seja, ainda existem inúmeros fatores impeditivos do gol. Admitir que o escanteio, por si só, é ato capaz de alterar o resultado da partida faz com que praticamente qualquer conduta dentro do jogo o seja, desde dar um passe para o companheiro ou provocar um lateral. Já um conceito extensivo de resultado não modifica essa conclusão pelo fato de que a quantidade de escanteios não faz parte do registro oficial do final da partida.

A combinação para receber um cartão vermelho, por outro lado, é mais controversa. Um conceito restritivo de resultado da partida parece conduzir à conclusão de que não se trata de ato capaz de alterá-lo pelos mesmos argumentos trazidos acima. Porém, um conceito extensivo concluiria que “forçar um cartão vermelho” modifica o registro final da partida, pois nele constará um elemento que não foi provocado naturalmente pelas circunstâncias do jogo.

A situação mais inusitada parece ficar por conta da combinação para receber um cartão amarelo. Partindo do conceito extensivo de resultado, a conclusão é a mesma que a do cartão vermelho. Partindo do conceito restritivo de resultado da partida, por outro lado, o ato não tem a potencialidade de alterar o placar do jogo. Porém, na maior parte dos campeonatos, o número de cartões amarelos de uma equipe serve como um dos critérios de desempate, ou seja, essa penalidade decorrente de uma situação de jogo que tem potencialidade direta, ainda que baixíssima, de modificar o resultado do campeonato, isto é, sua classificação final (há o precedente ocorrido no Campeonato Rio-São Paulo de 2002, quando o Palmeiras não avançou à final porque seus jogadores receberam mais cartões amarelos do que o outro semifinalista, o São Paulo). Portanto, ao que parece essa também pode ser uma combinação que cumpre as exigências da descrição legal, mesmo no conceito restritivo de resultado.

Por fim, cabe examinar a variável do cumprimento do acordado entre o participante do jogo e o terceiro. Tanto se o jogador, após a solicitação ou o aceite, não realizar o ato, quanto se o terceiro não entregar a vantagem combinada, a responsabilidade penal do jogador se manterá. Isto porque a descrição legal exige somente a conduta de solicitar ou aceitar, mas não que o ato seja posteriormente praticado ou que a vantagem seja recebida (é o que os penalistas chamam de crime formal, em uma concepção mais antiga, ou de mera conduta).

Aqui parece importante chamar a atenção dos leitores e leitoras para o aspecto da proporcionalidade da pena prevista pela lei. O tipo penal em questão criminaliza simplesmente solicitar ou aceitar, sem que se exija a efetiva ofensa à integridade do esporte (tanto que sequer é preciso que o ato no jogo efetivamente ocorra). No entanto, a pena prevista pelo legislador é de 2 a 6 anos e multa. Por outro lado, o tipo penal de estelionato (analisado na Parte n. 2 desta série) criminaliza conduta mais ofensiva ao patrimônio, pois exige que surja um prejuízo alheio. Porém, a pena prevista pelo legislador é de 1 a 5 anos e multa.

  1. Corrupção ativa no esporte (art. 41-D do Estatuto do Torcedor)

A descrição legal do crime é: “Dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva ou evento a ela associado”.

Da simples leitura da descrição legal é possível perceber que se trata “da outra face da moeda” da combinação com o participante do jogo de futebol (o “pacto” dito anteriormente). Esse tipo penal criminaliza a conduta do agente que combina com o participante da partida. Em razão dessa proximidade, faremos aqui algumas referências ao que já foi dito acima.

Em primeiro lugar, qualquer indivíduo pode praticar esse crime, não existindo a exigência de uma qualidade especial de ser participante do jogo (ao contrário do delito antes analisado). O objeto da conduta é exatamente o mesmo, a vantagem patrimonial ou não. A diferença fica por conta da conduta que recai sobre esse objeto, ou seja, proíbe-se dar ou prometer essa vantagem. É proibido tanto cumprir com uma solicitação do participante do jogo, dando a ele a vantagem solicitada, quanto procurá-lo com uma oferta de vantagem. Na situação base que analisamos, a conduta cumpre com esses requisitos, pois os apostadores procuravam os jogadores e lhes ofereciam uma soma em dinheiro, ou seja, prometiam vantagem patrimonial.

Importante destacar que, na variável sobre o aceite da oferta, o fato de o jogador não aceitar uma promessa que foi feita pelo apostador em nada modifica a responsabilidade penal desse, pois uma vez feita a promessa, o apostador poderá ser penalmente responsável, independentemente do aceite ou não do jogador.

Ocorre que, além de praticar objetivamente essa conduta de dar ou aceitar a promessa, o indivíduo precisa ter uma motivação subjetiva especial para que sua conduta seja considerada criminosa: é preciso que faça essa promessa ou entrega, pois tem a intenção de alterar ou falsear o resultado de uma competição ou evento a ela associado.

A interpretação de alterar ou falsear e de resultado de competição ou evento é idêntica à feita para o crime de corrupção passiva no esporte. A diferença sutil está no fato de que, aqui, não se exige que o terceiro requeira um ato ou uma omissão específica do jogador. Basta que tenha a intenção de alterar ou falsear o resultado. Reparem que, aqui, o ato concreto acordado é de menor importância, pois o que se exige do tipo é que o combinador queira alterar ou falsear o resultado seja do campeonato seja da partida. Assim, em uma situação hipotética, o terceiro que promete ao jogador vantagem para ele simplesmente perder o jogo, sem especificar quais atos devem praticar, já comete o crime, não importa quais atos o jogador praticará – ser expulso; fazer gol contra; provocar um pênalti ou não impedir um gol.

Por fim, com relação à variável do cumprimento do que foi acordado, a análise é igual à do crime anterior. Da mesma forma, vale aqui o comentário sobre a desproporcionalidade da pena prevista.

Conclusão

O leitor e a leitora perceberam que, da análise que foi feita surgiram dúvidas sobre quais condutas noticiadas pela mídia a partir da Operação Penalidade Máxima se encaixam e quais não se encaixam nos tipos penais analisados. Isso não significa, no entanto, que essas condutas não têm o condão de ofender a integridade do esporte – já esclarecida na parte n. 2. O raciocínio é inverso: algumas delas têm essa capacidade de ofender a integridade do esporte, porém a legislação que está em vigor no país não foi pensada para parte das condutas em específico, razão pela qual, em cumprimento ao princípio da legalidade e a decorrente vigência da lei penal no tempo, nem todas as condutas analisadas podem ser consideradas como criminosas sem lei anterior que as defina como tal.

*Caio Favaretto, advogado criminalista, professor da Pós-graduação em Direito Penal Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/SP

*Felipe Campana, advogado criminalista, doutorando e mestre em Direito Penal pela FD-USP

*Glauter Del Nero, advogado criminalista e professor da Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Fonte: Estadão

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