O jogo mudou? – 1

Primeiras reflexões sobre apostas, jogos de azar, futebol e direito penal (Parte 1)

Por Caio Favaretto, Felipe Campana, Glauter Del Nero e Rafael Valentini

O futebol sempre foi assunto no país que ostenta o Pentacampeonato mundial. Nosso veneno remédio, como disse José Miguel Wisnik, costura nossas conversas de elevador, no trabalho, nas confraternizações e até mesmo em eventos mais solenes como “quebra gelo”.


Entretanto, nem sempre as discussões se resumem aos acontecimentos ocorridos dentro das quatro linhas. Não raro o futebol é, na verdade, o pano de fundo que envolve outros temas, como política, cultura e, o que será o foco dessa série de trabalhos: a possível prática de ilícitos penais.


Se ao longo das décadas estiveram de mãos dadas com o mais popular dos esportes o jogo do bicho, a
mala branca como método de incentivo para os jogadores vencerem uma partida, escândalos envolvendo arbitragem — a exemplo da “Máfi a do Apito” no Campeonato Brasileiro de 2005 –, agora a bola da vez são as Casas de Apostas e as manipulações das partidas por meio do pagamento de vantagens indevidas aos jogadores profissionais.


A “Operação Penalidade Máxima”, capitaneada pelo Ministério Público do Estado de Goiás, jogou os holofotes em diversos esquemas de manipulação de jogos de futebol das séries A e B do Campeonato Brasileiro. As más-práticas, portanto, não se restringem aos jogadores das divisões inferiores, que não estão acostumados a receber contracheques milionários.


De maneira geral, essas práticas tinham a seguinte dinâmica: apostadores procuravam atletas profissionais de um time de futebol e ofereciam valores para que eles, deliberadamente, realizassem alguma conduta ou dessem causa a algum acontecimento ao longo do jogo(receber um cartão, fazer um pênalti, forçar um escanteio etc.), situações essas que eram objeto de apostas em casas virtuais.

Acompanhando as investigações que vieram a público pela mídia tradicional e que repercutiram nas redes sociais, surgiram, naturalmente, questionamentos sobre as possíveis implicações penais das condutas em tese praticadas, como as possíveis sanções aplicáveis para os ilícitos que vierem a ser confirmados e o debate sobre a necessidade de aprimoramento da legislação vigente, especialmente naquilo que atina com a repercussão jurídica da manipulação dos eventos esportivos e a consequente necessidade de regulamentação das atividades desenvolvidas pelas Casas de Apostas.

A legislação penal aplicável: o “Estatuto do Torcedor”


As normas penais aplicáveis às hipóteses de manipulação de resultados não estão presentes no Código Penal, mas sim na Lei Federal n.º 10.671/2003, mais conhecida como “Estatuto do Torcedor”, cuja finalidade é, essencialmente, estabelecer “normas de proteção e defesa do torcedor” (artigo 1º), que é o
cliente e razão principal da existência do evento esportivo.


Ao tempo de sua criação, do ponto de vista específico do futebol, o Estatuto buscou reprimir a
efetiva manipulação do resultado final da partida e/ou do campeonato esportivo, isto é, uma influência antidesportiva de um atleta no placar por meio de um gol-contra proposital, um pênalti voluntariamente forçado para beneficiar o adversário, um cartão vermelho evitável para aumentar as chances de vitória do outro clube etc. Ocorre que, dificilmente o legislador brasileiro imaginaria, lá em 2010, que treze anos depois também estariam disponíveis no mercado apostas não só relacionadas aos placares finais das partidas de futebol, mas também sobre circunstâncias ocorridas durante o jogo.


Ou seja, no atual modelo de negócio das apostas esportivas é possível ganhar dinheiro se o apostador acertar (i) se o primeiro lance após o início da partida será, por exemplo, um escanteio; (ii) se determinado jogador irá tomar um cartão amarelo até o final do jogo; (iii) se o primeiro tempo irá terminar após um lance de lateral etc. Em resumo, alguns acontecimentos ,inerentes à disputa e que, não necessariamente, influenciarão no resultado final do confronto, são objeto de apostas.

Ainda, quando o celular servia apenas para fazer e receber ligações e, no máximo, enviar um SMS, não era possível imaginar que surgiriam “Casas de Apostas” online, que possibilitariam os lances num ambiente virtual controlado por smartphones muito mais eficientes e dinâmicos do que os computadores do início dos anos 2000.

Feita essa reflexão e voltando para a realidade de 2023 — e dos fatos envolvendo a “Operação Penalidade Máxima” –, significa dizer que, como é natural acontecer, a vida em sociedade e os modelos de negócio evoluíram muito mais rápido do que as normas penais. Assim, novos desafios estão sendo lançados em direção aos profissionais que atuam na esfera criminal(Polícia Judiciária, Ministério Público, Poder Judiciário e Advogados/Defensores).


A partir dessa imbricada relação que começou a se estabelecer entre Futebol e Direito Penal, iniciamos hoje uma série de artigos que buscará abordar alguns de seus desafios, tais como: delimitar o alcance e, principalmente, o objeto de tutela penal das normas penais aplicáveis às práticas acima mencionadas, envolvendo a “compra” de jogadores com o objetivo de obter vantagem indevida mediante a manipulação de apostas esportivas (parte n. 2); as questões processuais atinentes às investigações e ações penais envolvendo essas práticas (parte n. 3); as consequências às quais estão sujeitos os autores que confessarem os ilícitos praticados ou que forem condenados criminalmente por tais delitos (parte n. 4) e, de forma mais geral, a análise das apostas virtuais dentro do debate dos jogos de azar e as possíveis propostas de regulamentação e prevenção às más práticas (parte n. 5).

*Caio Favaretto, advogado criminalista, professor da Pós-graduação em Direito Penal Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/SP


*Felipe Campana, advogado criminalista, doutorando e mestre em Direito Penal pela FD-USP


*Glauter Del Nero, advogado criminalista e professor da Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie


*Rafael Valentini, advogado criminalista, especialista em processo penal e membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP

Fonte: Estadão

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