É verdadeira a premissa da natureza civil do ilícito de improbidade?

Virou tarefa impossível deixar de escrever algumas breves linhas no intervalo de tempo entre o fim da última sessão (tele)presencial e o início da próxima sessão do Supremo Tribunal Federal, em que se julga o ARE 843.989/PR, no qual foi reconhecida a repercussão geral tratada pelo Tema 1.199/STF: o incômodo ao assistir o início do julgamento e da prolação dos votos foi insuportável para ser carregado sozinho.

É verdade que o julgamento está apenas no seu início e é inclusive possível, por disposição expressa do Código de Processo Civil, que haja mudanças de posição e alterações de voto de ministros até o momento da proclamação do resultado pelo presidente (artigo 941, §1º). Mas já de partida, do voto lançado pelo ministro Alexandre de Moraes, é possível perceber que o voo no qual decolamos com a Lei nº 14.230/2021 talvez tenha se projetado muito perto do Sol para o apreço de alguns e esteja em risco de terminar no fundo do mar, para descansar em mar tranquilo ao lado de Ícaro.

Não se pretende, aqui, discutir, tecnicamente, as conclusões a que chegou o relator do agravo em recurso extraordinário colocado em julgamento, que, ao fim e ao cabo, são, objetivamente, o que interessa para a fixação das teses. A proposta deste escrito é, ao contrário, entender a premissa de onde partiu o ministro Alexandre de Moraes para proferir o seu voto e confrontá-la com as premissas doutrinárias mais básicas sobre a matéria para tentar-se começar a entender o tamanho do problema que se avizinha.

A premissa da natureza da improbidade administrativa, nesse sentido, parece ser a questão fundamental para se entender o grau de perigo a que estão expostas a Lei 14.230/2021 e as alterações por ela trazidas à responsabilização por improbidade administrativa.

A premissa do ministro Alexandre
O ministro Alexandre de Moraes é claro e assertivo ao afirmar que, em sua concepção, os atos de improbidade administrativa têm natureza civil.

Afirma que “a LIA definiu os atos de improbidade administrativa como aqueles que, possuindo natureza civil e devidamente tipificados em lei federal, ferem direta ou indiretamente os princípios constitucionais e legais da administração pública”, escudando a sua posição em respeitáveis doutrinadores, mas citando-os em publicações de 1995, 1998 e 1999, por exemplo.

O ministro ainda reforça a sua posição valendo-se de Fábio Konder Comparato, que afirma que “‘a própria Constituição distingue e separa a ação de condenatória do responsável por atos de improbidade administrativa às sanções por ela expressas, da ação penal cabível, é, obviamente, porque aquela demanda não tem natureza penal’ (Ação de improbidade: Lei 8.429/92. Competência ao juízo do 1° grau. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n. 9, jan. 1999)”, valendo-se nitidamente, de um argumento a contrario sensu de que se a ação de improbidade “não tem natureza penal” ela seria de natureza, naturalmente, civil. Apoia-se, por fim, em alguns entendimentos proferidos pelo STF em que se tratou a improbidade como ato ilícito de natureza civil.

Eis que, ao analisar o texto da legislação vigente, trazido pela Lei 14.230/2021, o ministro relator afirmou que a legislação, “de maneira inexplicável, pretendeu, em seu artigo 17-D, excluir a natureza civil da ação de improbidade administrativa (grifos no original)”, apontando que, em sua visão, “ao errônea e fictamente tentar excluir a natureza civil da ação de improbidade, a lei não teve a força de excluir a natureza civil do ato de improbidade e suas sanções, pois essa ‘natureza civil’ tem substrato diretamente do texto constitucional”.

Mais ao fim da minuta de voto — mas em um ponto importante para reafirmar esta premissa —, o ministro ainda afirma que “a Lei 14.230/2021, somente, estabeleceu uma genérica aplicação ‘ao sistema de improbidade administrativa os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador’, que precisa ser compreendida”, como se tal previsão fosse vazia e pouco significativa.

Adiante, ainda afirma que “a nova lei optou, expressamente, por estabelecer a aplicação do Direito Administrativo Sancionador no âmbito do sistema de improbidade administrativa, reforçando a natureza civil do ato de improbidade” e que “o fez, para garantir um maior rigor procedimental nas investigações e uma maior efetividade na aplicação do contraditório e ampla defesa”.

É claro e evidente, nesta altura, que, se a premissa fundamental para a análise de todo o restante das matérias afetadas à Repercussão Geral é essa, todo o resto só tende a ser evidentemente derivação dessa compreensão. E afirmar essa premissa, com todo o respeito, indica um inexplicável desprendimento da doutrina mais especializada, que se debruça no assunto há mais de duas décadas.

A improbidade não tem natureza de ilícito civil simples
Ousamos, assim, apresentar algumas considerações quanto a essa premissa estabelecida, o que, certamente, implica na necessidade de revisão das conclusões assumidas pelo ministro Alexandre.

Em primeiro lugar, não se pode admitir que o ato de improbidade seja classificado como ilícito de natureza civil porque as sanções aplicáveis a partir da sua constatação não são de natureza ressarcitória, mas punitiva e repressiva. E uma rápida retomada de conceitos importantes precisa ser feita para essa compreensão.

De saída, não se pode fugir de resgatar a noção de que o Direito é uno e indivisível. A divisão temática e material entre os ramos do Direito é, segundo substancial parte dos estudiosos do Direito (embora não seja, de fato, questão pacífica), algo importante para fins de sistematização das leis.

Como afirma Tércio Sampaio Ferraz Júnior, por exemplo, as grandes dicotomias do direito público e direito privado “são apenas pontos de orientação e organização coerente da matéria, que envolvem, por isso mesmo, disputas permanentes, suscitando teorias dogmáticas diversas, cujo intuito é conseguir o domínio mais abrangente e coerente possível dos problemas” 2. Apesar disso, essas divisões não retiram do Direito o seu caráter uno.

Ora, essa compreensão é fundamental para a compreensão de que o exercício, pelo Estado, do poder punitivo derivado de uma atuação pautada pela legalidade estrita e dentro dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico, denominado ius puniendi, se dá a partir da constatação de uma violação ou de uma infração ao ordenamento jurídico posto. Regis Fernandes de Oliveira bem elucida que “a infração, em sentido genérico, é a repulsa que o ordenamento jurídico estabelece em relação aos comportamentos desviantes. (…) A antijuridicidade é comum a todos os ramos do Direito que se subdividem apenas por questão didática” 3.

Assim, o comportamento desviante, nas palavras de Regis de Oliveira, é ensejador da constatação da ilicitude, a qual, per se, não se atrela a matéria ou a ramo do Direito, mas se resume à violação da norma posta.

É o que afirma, por sua vez, Heraldo Garcia Vitta, quando diz que “as diferenças existentes entre os ilícitos penal, administrativo e civil constituem manifestações de um mesmo conceito, que não é próprio desta ou daquela disciplina, antes compreende todos os tipos de ilícitos do ordenamento. Trata-se de conceito lógico-jurídico, de validez universal. O conceito de ilícito não decorre deste ou daquele ordenamento jurídico, não é conceito jurídico positivo; aplica-se a todos, independentemente do lugar e do tempo em que tiverem vigência”.

Dessa forma, fica claro que a atividade punitiva do Estado decorre, em essência, da constatação de que o ilícito, em si, é a violação de determinação estabelecida pelo ordenamento jurídico para aqueles que a ele se sujeitam, e para a qual é prevista, pelo mesmo ordenamento, uma correspondente sanção jurídica, sem que exista qualquer espécie de dependência ou correlação quanto à matéria ou ramo do Direito a que pertença a norma hipoteticamente violada.

Nesse sentido, de acordo com Rafael Munhoz de Mello 4, “pode-se definir sanção jurídica como a consequência negativa atribuída à inobservância de um comportamento prescrito pela norma jurídica, que deve ser imposta pelos órgãos competentes, se necessário com a utilização de meios coercitivos. Ao estabelecer a sanção jurídica, atribui o legislador uma consequência negativa à prática do comportamento ilícito, pretendendo com isto incentivar a observância das condutas prescritas”.

Essencialmente, então, para a especializada doutrina, a distinção entre os ilícitos se daria em razão dessas sanções, que se dividem, classicamente, entre as sanções civis, administrativas e penais, cada qual com suas especificidades, o seu nível de gravidade e o seu objeto de tutela.

Eis, aqui, o ponto nevrálgico da questão. O ilícito civil é caracterizado pela sanção civil que se volta à reparação dos danos causados. E as sanções previstas para a improbidade administrativa — apesar de conterem, em seu bojo, uma determinação de reparação de eventuais danos ao erário, quando existem — são eminentemente punitivas e não ressarcitórias, como perda de cargo público, proibição de contratação com a administração, multas punitivas e a suspensão de direitos políticos (previstas no artigo 12 da Lei 8.429/92).

Assim, apesar de não se defender a identidade absoluta do ilícito de improbidade administrativa com os ilícitos penais (questão mais complexa), não se pode admitir que sejam os atos de improbidade administrativa tratados como meros atos de ilicitude civil, eis que as sanções a eles impostas são evidentemente muito mais graves e, mais do que isso, se voltam exclusivamente a punir o agente infrator, sem qualquer pretensão de reparação ou ressarcimento de danos. É dizer, contrariamente ao que afirmou o ministro em seu voto, que não é porque a demanda não tem natureza penal que ela terá, automaticamente, natureza civil.

Em segundo lugar, como decorrência natural do primeiro ponto, a natureza jurídica do ilícito de improbidade não pode ser extraída a partir do diploma legal em que se baseia o legislador para prever o seu procedimento e as regras do seu processamento, como feito pelo legislador ao prever a incidência do Código de Processo Civil no artigo 17 da Lei de Improbidade. E assim nem poderia ser, sob pena de se desvirtuar a natureza de um sem-número de conceitos jurídicos advindos de outros ramos do Direito.

Veja-se, por exemplo, que o ramo do Direito Tributário se vê ligado a uma série de regras e princípios próprios aplicáveis nas relações jurídicas que são qualificadas pela existência de uma obrigação tributária. São incontáveis as circunstâncias em que o Código de Processo Civil é utilizado, não apenas como codex subsidiário, mas como supedâneo processual principal para a tomada de uma série de medidas judiciais no âmbito tributário. Nem por isso se poderia dizer que o Direito Tributário, por conta disso, ostenta característica civil, ou que as obrigações tributárias possuam essa natureza, e que, assim, os princípios e premissas do âmbito civil se apliquem indiscriminadamente às relações tributárias (lembre-se, por exemplo, das regras de anterioridade tributária!).

Assim, não parece haver qualquer fundamento em se sustentar que a determinação do artigo 17 da Lei de Improbidade seja suficiente para, por si só ou com outros elementos de reforço, justificar o enquadramento do ilícito de improbidade administrativa no rol de ilícitos civis.

Em terceiro e último lugar, por mais que a probidade administrativa seja um direito transindividual 5, o regramento da coibição à improbidade administrativa possui particularidades que precisam ser atendidas e observadas em vista da sua natureza sancionatória e repressiva.

Ora, preponderou no voto do ministro Alexandre a noção de que a improbidade seja regulada de maneira protetiva à moralidade administrativa e à legalidade, aos princípios da Administração Pública, e que atende ao interesse público e ao Estado. Esse foi, inclusive, o seu esteio para sustentar a irretroatividade dos prazos prescricionais ali previstos, na medida em que a aplicação da prescrição retroativamente aos casos já em curso apenas representaria a imposição, ao Estado, de uma punição em razão de uma inércia que não existiu enquanto vigia a lei de improbidade em suas regras anteriores.

O argumento, com respeito devido, não se sustenta pelos mesmos motivos que já se expôs. Afinal, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica determina, por exemplo, que a eventual redução de um prazo prescricional, no âmbito penal, se aplica independentemente da inércia estatal, eis que o foco da alteração mais benéfica não é o prejuízo que se dará ao Estado na persecução da punição da infração e da aplicação penal, mas o benefício que se trará ao indivíduo na aplicação de uma lei repressiva e punitiva.

E ação de improbidade administrativa, como aponta Teori Zavascki 6, apesar de se originar de uma proteção a um direito transindividual, foi imbuída pela Constituição não com o objetivo de preservar ou recompor o erário ou os atos da administração, que seriam os objetivos primordiais de uma ação civil pública e da ação popular, “mas sim, fundamentalmente, o de punir os responsáveis por atos de improbidade”.

Assim, diante de um caráter eminentemente repressivo e punitivo, voltado à aplicação de penalidades mais do que à tutela de direitos, a ação de improbidade é “marcadamente diferente da ação civil pública e da ação popular” 7, ainda que as três atendam a esse objetivo “maior e superior de tutelar o direito transindividual e democrático a um governo probo e a uma administração pública eficiente e honesta” 8.

Nesse sentido, é flagrantemente equivocado o voto do ministro Alexandre de Moraes quando prioriza, na análise da retroatividade das leis mais benéficas, a proteção ao Estado em detrimento da proteção ao indivíduo, na medida em que se está diante, efetivamente, de uma ação judicial de graves sanções e consequências ao indivíduo, com diferenças marcantes como notadas pelo saudoso ministro Teori.

Essa questão, evidentemente, também deriva de um posicionamento da ação de improbidade administrativa muito mais em uma lógica protetiva do Estado e das relações públicas do que em uma lógica de uma ação punitivo-repressiva, agressiva com o indivíduo que se vê por ela premido.

Conclusão
O que se pode, então, esperar do julgamento do ARE 843.989/PR e do Tema 1.199/STF, continua a ser uma incógnita. O que se pode, entretanto, verificar, é que já há um manifesto posicionamento de um dos ministros do Supremo Tribunal no sentido de que a ação de improbidade tem caráter e natureza civil, contrariamente ao que estatui a própria lei que a regula, e já é possível vislumbrar os efeitos nefastos dessa visão na aplicação da nova lei.

Não é crível que a legislação disponha, expressamente, no artigo 17-D, quanto à inexistência de natureza civil da ação de improbidade, desvinculando-a expressamente desse rol de ações eminentemente ressarcitórias, e que o ministro Alexandre de Moraes deliberada e expressamente deixe de aplicar o dispositivo na sua inteireza sob o fundamento de que a lei o teria feito errônea e fictamente.

Aliás, bem de se lembrar que, como já noticiado pela ConJur 9, o ministro Alexandre de Moraes já perfilou entendimento de que um tribunal não pode deixar de aplicar uma lei sem declará-la inconstitucional, pois isso é fazer controle de constitucionalidade difuso, com correto fundamento no artigo 97/CF e Súmula Vinculante nº 10. Assim, difícil a compreensão a respeito da decisão do mesmo ministro Alexandre pela não aplicação do artigo 17-D da Lei de Improbidade Administrativa sem que a tenha declarado inconstitucional.

De toda forma, resta-nos acompanhar o restante do julgamento do ARE 843.989/PR, a fim de que possamos entender, de maneira mais clara e efetiva, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, como órgão judicial, a respeito da natureza jurídica do ilícito de improbidade administrativa, eis que, ao fim e ao cabo, é esse o entendimento que prevalecerá nas Cortes brasileiras, independentemente (e infelizmente apesar) do que diz a lei federal a esse respeito.

Desde já, entretanto, fica o alerta e o apontamento expresso quanto ao entendimento do ministro Alexandre a respeito da natureza desse ilícito, o que indica, sem dúvida, o absoluto descolamento da jurisprudência brasileira com o entendimento majoritário da doutrina nacional a respeito do tema — que foi, sem sombra de dúvida, abraçado pelo legislador reformador da lei de improbidade.

Talvez tenhamos, de fato, voado muito mais perto do Sol do que deveríamos e estejamos destinados, como Ícaro, ao fundo do mar. Aguardemos os próximos capítulos.


1 Disponível aqui 

2 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 132.

3 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. A civilização repressora e o Direito Sancionador. In: OLIVEIRA, José Roberto Pimenta (coord.). Direito administrativo sancionador: estudos em homenagem ao professor emérito da PUC/SP, p. 56.

4 MELLO, Rafael Munhoz de. Sanção administrativa e o princípio da culpabilidade. Revista de direito administrativo e constitucional, Belo Horizonte, ano 5, nº 22, p. 25-57, out./dez. 2005, p. 26. Disponível em: http://www. revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/624/77. Acesso em: 6 ago. 2022.

5 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2005. Tese (doutorado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005, p. 90. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/4574/000502398.pdf. Acesso em: 06 ago 2022.

6 ZAVASCKI, op. cit., p. 91-92.

7 Ibid.

8 Ibid., p. 102.

9 Disponível aqui

Reproduzido de Conjur

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