Improbidade culposa e retroatividade da lei mais benéfica: problema do item 3 do Tema 1.199/STF e entendimentos do STJ

Filipe da Silva Vieira
Rayna Calderaro Cristo

Este artigo busca explicar a problemática da aplicação do item 3 do Tema 1.199 do Supremo Tribunal Federal, que julgou o ARE 843.989/PR, abordando como essa decisão impacta o papel do juiz nas ações de improbidade administrativa. Além disso, o texto apresenta como o Superior Tribunal de Justiça tem lidado com esse problema, tentando resolvê-lo sem contrariar o entendimento do STF.

Retroatividade mitigada e item 3 do Tema 1.199/STF

O Tema 1.199/STF já foi transcrito inúmeras vezes em relevantes artigos jurídicos e decisões judiciais, de modo que estes autores limitar-se-ão a transcrever o próprio item 3, motivo principal do que será aqui discutido, e que assim versa:

“3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente.

Como já exposto em diversos escritos [1], o tema representou a aplicação de uma retroatividade mitigada quanto à alteração legislativa benéfica ao cidadão da norma que regula a improbidade administrativa: se a prescrição (norma posterior mais benéfica) foi entendida como irretroativa, a revogação da modalidade culposa (que também é norma posterior mais benéfica) foi entendida como retroativa, mas apenas nas hipóteses em que não transitada em julgado a decisão condenatória.

Entretanto, o ponto e vírgula antecederam o perigoso detalhe que será objeto de discussão: “devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente”. E é aqui que reside problema do entendimento do STF: a atribuição, ao juízo competente, da tarefa de analisar eventual dolo do agente público, sem qualquer condicional ou limitação.

No conteúdo da decisão do acórdão que fundou o Tema, afirmou o ministro Alexandre de Moraes que “apesar da irretroatividade, em relação a redação anterior da LIA, mais severa por estabelecer a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa em seu artigo 10, vige o princípio da não ultra-atividade, uma vez que não retroagirá para aplicar-se a fatos pretéritos com a respectiva condenação transitada em julgado, mas tampouco será permitida sua aplicação a fatos praticados durante sua vigência mas cuja responsabilização judicial ainda não foi finalizada”.

O ministro ainda sustenta que “não se trata de retroatividade da lei, uma vez que todos os atos processuais praticados serão válidos”, mas que “em virtude ao princípio do tempus regit actum, não será possível uma futura sentença condenatória com base em norma legal revogada expressamente”.

Fundamentos e limites constitucionais, processuais e institucionais: a perspectiva e o papel do juiz no Tema 1.199/STF

De saída, a questão justifica críticas teóricas que, respeitosamente, são evidentes.

Em primeiro lugar, há que se considerar a questão sob a perspectiva institucional e constitucional. Constitucionalmente, o Ministério Público detém a função de promover ações civis públicas e inquéritos civis (artigo 129, VIII/CF), dentre o que se inserem as ações de improbidade administrativa. O entendimento foi reforçado pelo artigo 17 da Lei de Improbidade.

Em segundo, mas sem se desgarrar da lógica constitucional, é fundamental considerar a questão sob a perspectiva processual, levando em consideração a teoria geral do processo, as disposições legais do Código de Processo Civil e, ainda, as especificamente previstas na Lei de Improbidade Administrativa.

De uma forma ou de outra, a questão posta circunda a mesma temática: o papel do juiz no julgamento da improbidade, especificamente no atendimento à determinação do item 3 do Tema 1.199.

A atribuição, pelo citado item 3, do dever (porque é essa a palavra estabelecida no acórdão do Supremo Tribunal Federal) de analisar eventual dolo por parte do agente que é alvo da ação de improbidade rompe, a princípio, com o equilíbrio processual institucional criado na lógica geral do processo judicial, que divide os atores processuais a partir de suas funções, ônus e atribuições precípuas.

Na gramática do Direito Processual Penal, a imposição desse dever viola o sistema acusatório do processo, em que separa as funções de acusar e julgar; na gramática do direito processual civil (eleita como a aplicável nas hipóteses da improbidade administrativa), há uma violação flagrante da atribuição dos ônus da prova ao autor e ao réu, previstos no artigo 373/CPC e versados pelo artigo 17, §19, II da Lei de Improbidade.

Sob a gramática que for, há um problema sério derivado da imposição desse dever, na medida em que atribui ao julgador o papel de reanalisar, na prova produzida, algo que não era necessariamente nem objeto da pretensão do autor – que poderia, por exemplo, ter ajuizado uma ação de improbidade voltada ao reconhecimento da improbidade culposa de saída –, nem objeto da defesa do réu – que poderia, por exemplo, ter produzido a sua prova sem preocupar-se com a demonstração de que não tivesse agido de maneira dolosa.

Ao se impor ao magistrado o dever de reanalisar provas para identificar dolo, o Supremo Tribunal compromete o equilíbrio processual. A revisão de provas para encontrarem-se os indícios ou valorar-se questões não trazidas ou sustentadas pelo autor ou pelo réu ultrapassa, evidentemente, os limites da função judicial primária, a gerar evidente cenário de insegurança jurídica.

Nada condizente com a conduta esperada do juiz no processo civil ou penal brasileiro, é óbvio dizer, a quem coube, desde o começo, analisar e julgar os autos a partir dos postos e pressupostos trazidos pelo autor e pelo réu, pelo denunciante e pelo denunciado e dentro das regras e princípios que lhes são trazidas pelo ordenamento jurídico, com a necessária equidistância de ambas as partes.

Uma leitura sistêmica da Lei de Improbidade permite, tranquilamente, entender-se os limites estabelecidos pela norma à atuação do magistrado: o juiz não pode, por exemplo “modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor” (artigo 17, §10-C, assemelhado ao artigo 492/CPC); “condenar o requerido por tipo diverso daquele definido na petição inicial” (artigo 17, §10-F, I); “condenar o requerido sem a produção das provas por ele tempestivamente especificadas” (artigo 17, §10-F, II); “presumir verdadeiros os fatos alegados pelo autor em caso de revelia” (artigo 17, §19, I), tudo a demonstrar a sua adstrição estrita ao quanto sustentado, arguido e capitulado pelo autor da ação, sob pena de violação, inclusive, de sua imparcialidade enquanto magistrado da causa.

Não há qualquer justificativa razoável e compatível com a lógica da improbidade, portanto, para que, a despeito de todas essas vedações, o magistrado tenha o dever, em razão de constatar a existência de uma ação ajuizada para condenação por improbidade culposa ou já de uma condenação por essa modalidade, de reanalisar os fatos narrados e as provas produzidas para concluir pela existência de elemento intencional nas condutas sob análise.

Poderia ele reabrir a instrução probatória? Converter o julgamento em diligência? Rejulgar o mérito da causa? Nenhuma disposição constitucional ou legal parece apontar nesse sentido. E, a despeito disso, foi esse o entendimento do Supremo Tribunal no que toca a esse ponto específico.

Importante anotar, nesse sentido, que o juiz tem liberdade, enquanto elemento ativo na relação processual, de determinar a produção de prova e de buscar o esclarecimento de fato que repute relevante, e isso é reconhecido pela doutrina processualista civil e solidificado pela legislação processual civil brasileira. Isso é diverso, entretanto, de inverterem-se os papeis processuais e atribuir-se ao magistrado o dever de reanalisar os autos a fim de investigar o que talvez não tenha sequer o autor da ação pretendido.

Posição do STJ

O Superior Tribunal de Justiça tem revisitado os efeitos do Tema 1.199/STF, especialmente no tocante ao item 3. A corte identificou as inconsistências do comando ao juiz para reanalisar dolo, destacando que tal análise pode infringir o princípio da ne reformatio in pejus, quando o recurso é exclusivamente do réu. E as conclusões a que têm chegado a sua 1ª e a 2ª Turmas descortina precisamente o grave problema do item 3 do Tema 1.199/STF.

Em junho e em novembro deste ano, esta ConJur noticiou [2] decisões proferidas pelas duas Turmas no exato mesmo sentido, dando, inclusive, títulos quase idênticos às matérias: “Em recurso só do réu, improbidade culposa sempre vai gerar absolvição” e “Em recurso do réu, improbidade administrativa culposa deve levar à extinção da ação”.

E, nas duas situações, percebe-se de pronto que a questão não foi analisada de maneira pacífica e unânime.

Na 1ª Turma, julgando-se o AgInt no AREsp 2.163.400/MG, desproveu-se agravo interno de município autor de ação de improbidade por três votos a dois, julgando-se improcedente a ação de improbidade. Na 2ª Turma, no julgamento do AgInt em AREsp nº 1.905.533/SP, a tira de julgamento aponta unanimidade dos votos, mas a leitura dos votos denuncia a existência de divergências havidas com o voto do ministro relator, Herman Benjamim, que aderiu às divergências pelo princípio da colegialidade.

Em ambos os casos, um dos principais pontos em discussão foi a constatação de que não existia recurso da parte autora (Ministério Público ou Fazenda Pública) nos autos.

Tal circunstância é velha conhecida especialmente do direito penal, mas que também tem seus efeitos no âmbito processual civil: a da ne reformatio in pejus, ou da vedação de que a situação do recorrente seja piorada a partir da análise de seu próprio recurso, quando inexista recurso da parte adversa.

E ela impacta diretamente a análise do item 3 do Tema 1.199/STF, na medida em que a ausência de recurso da parte adversa seria impeditivo para a reanálise da situação em prejuízo do réu, a despeito de não ter sido isso antecipado pela decisão do Supremo Tribunal Federal.

Não à toa, o Superior Tribunal de Justiça, ao se defrontar com os casos a serem julgados sob a ótica da nova lei, começou a identificar a problemática: de um lado, recursos especiais ou agravos em recursos especiais advindos exclusivamente dos réus, condenados, nesses casos específicos, pela prática de atos de improbidade culposos; de outro lado, a determinação expressa do Tema 1.199/STF no sentido de que é dever do juízo competente reanalisar os fatos sob a luz do elemento subjetivo intencional para aferir a potencial culpabilidade do agente pela ótica do dolo.

Evidentemente, a situação seria impossível de se acomodar sem violar, de um lado, o princípio da ne reformatio in pejus, e, de outro, a disposição expressa do item 3 do citado tema.

E, felizmente, o Superior Tribunal de Justiça, ainda que o tenha feito em casos concretos, sem fixação de entendimento em repetitivos e com flagrantes divergências entre os ministros componentes da 1ª e 2ª Turmas, tem se posicionado no sentido de que a ne reformatio in pejus é princípio inafastável mesmo diante da incidência do Tema fixado pelo Supremo Tribunal Federal.

A particularidade no STJ que alicerça esse entendimento é a da incidência da Súmula 7, que atine exclusivamente às causas que lhe são submetidas em hipóteses de manejo de recurso especial, e que se torna sustentáculo da impossibilidade de reanálise do elemento subjetivo nas decisões condenatórias advindas das instâncias ordinárias. Esse foi o entendimento exposto pelo ministro Mauro Campbell Marques no julgamento do AgInt em AREsp nº 1.905.533/SP, que afirmou:

“Parece-me inconciliável, portanto, a incidência da Súmula 7/STJ proposta pelo Ministro Relator a partir de fundamentação que modifica a qualificação jurídica definida pela origem sobre o ato imputado ao agente público.

Tal proceder configura irrefragável ‘contradictio in adjecto’. Ora, se incide a Súmula 7/STJ, inconteste a manutenção do acórdão recorrido que confirmou a atuação culposa do réu em improbidade administrativa. Por outro lado, se o Ministro Relator pretende a modificação do elemento anímico atribuído à conduta do agente público, não há falar em incidência da Súmula 7/STJ, mas sim julgamento de mérito que incorre em flagrante ‘reformatio in pejus’, pois os autos vieram ao STJ por recursos interpostos unicamente pelos particulares.”

No caso do AgInt no AREsp 2.163.400/MG, a afirmação é ainda mais contundente, nos termos do voto do ministro Benedito Gonçalves em voto-desempate, em que sustenta:

Nessa linha de percepção, com a máxima vênia, penso que a proposição do Ministro Paulo Sérgio Domingues de interpretação do item 3 da tese firmada pelo STF no Tema n. 1.199, no sentido de que competirá à Corte de origem analisar eventual dolo por parte do agente, quando houver imputação em dolo ou culpa e estiver claro no acórdão o elemento subjetivo culposo, poderá resultar em reformatio in pejus na hipótese de recurso exclusivo da defesa.

Outrossim, entendo que na mencionada hipótese restaria preclusa eventual condenação na modalidade dolosa, uma vez que o autor da ação de improbidade administrativa resignou-se com a condenação na modalidade culposa ao não recorrer, sendo de rigor, portanto, a extinção do feito no âmbito desta Corte Superior, em observância aos princípios da razoável duração do processo e do ne reformatio in pejus.”

A afirmação do ministro Benedito é cabal no sentido de que eventual condenação na modalidade dolosa estaria preclusa na medida em que o autor da ação de improbidade resignou-se com a modalidade culposa ao não recorrer, de maneira que se dá o fecho do presente artigo.

A questão era fundamental e não se viu abordada pelo STF em momento algum da decisão que ensejou o Tema 1.199. Pelo contrário: atribuiu-se um dever amplo e irrestrito ao juiz da causa de reanalisar elemento subjetivo, ainda que em prejuízo do réu, sem atentar-se para os riscos concretos que foram criados a partir desse entendimento.

A atuação do STJ tem sido crucial para preservar princípios fundamentais, como a ne reformatio in pejus, minimizando os impactos negativos do item 3 do Tema 1.199/STF. Contudo, é urgente que o STF reavalie sua posição, ajustando o entendimento para garantir segurança jurídica e respeitar os limites constitucionais e processuais.

Resta saber por quanto tempo o entendimento perdurará e se o Supremo Tribunal Federal abrangerá essa lógica para adequar os termos do item 3 do Tema 1.199 que se mostram, efetivamente, falhos e equivocados sob qualquer ótica que sejam lidos.


[1] Como se lê, por exemplo, em mais um dos notáveis textos do prof. Luciano Ferraz, disponível em https://www.conjur.com.br/2023-ago-10/interesse-publico-tema-1199-stf-nao-restringe-retroatividade-lei-1423021/.

[2] https://www.conjur.com.br/2024-jun-29/em-recurso-so-do-reu-improbidade-culposa-sempre-vai-gerar-absolvicao-decide-stj/#:~:text=A%20reformatio%20in%20pejus%20ocorreria,ele%20se%20torna%20potencial%20alvo; e https://www.conjur.com.br/2024-nov-24/em-recurso-do-reu-improbidade-culposa-deve-levar-a-extincao-da-acao/?utm_term=Autofeed&utm_medium=Social&utm_source=LinkedIn#Echobox=1732526931

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